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Sobre anos ruins


Todo dezembro a mesma coisa: alguém posta aquele meme do Mussum dizendo “Keanu Reeves” e eu cuspo todo o meu café no computador, rindo descontroladamente. Esse talvez seja o meu meme preferido de todos os tempos, ainda que a risada nunca viesse acompanhada de identificação. Sempre achei de uma ingenuidade louca essa coisa de ficar rotulando os anos – esse bom, aquele péssimo. Pra mim o dia 31 de dezembro sempre chegava com um saldo meio equilibrado de perdas e ganhos – pendendo sempre mais pro lado dos ganhos. Também me irritava essa coisa de geral ficar dizendo “já vai tarde” pros anos que findam – quanto egoismo! E se o dos outros foi ótimo?

Coincidência ou não, dois mil e quinze foi decididamente o pior ano da minha vida. Escrevendo assim parece uma coisa tão definitiva, tão pesada que, poliana que sou, já começo a listar mentalmente as várias coisas muito boas que aconteceram este ano e que provariam justamente o contrário – chegaremos a elas, mas antes vamos falar de coisas mais universais.

Todos os anos, alheia à crise e às catástrofes, a população mundial cresce. Atualmente faz isso num ritmo de 1,1% ao ano, com uma média de 350 mil nascimentos e 150 mil mortes por dia. Apenas para lembrar o óbvio: que tragédias como o ataque terrorista a Paris ou o naufrágio de embarcações lotadas de imigrantes na costa da Europa entram nesta conta e não a alteram. O que significa que, em termos quantitativos, imaginando que um ano ruim fosse aquele em que morreram mais pessoas, dois mil e quinze não foi nem pior nem melhor que outros. E lembrando que toda semana morrem dezenas de milhares de pessoas em conflitos que não chegam a virar notícia.

Mas não é assim que medimos a nossa satisfação com o ano que se encerra. Fazemos esse balanço com base naquilo que nos afetou, direta ou indiretamente (mas vamos combinar que muito mais diretamente), de maneira subjetiva e muito emocional. Minha birra com quem maldiz certos anos advém exatamente daí: é uma atitude pirracenta, egoísta e infantil.

Mas daí aconteceu dois mil e quinze (estou curtindo escrever por extenso, licença) e, olha, acho que vou ter que morder a minha língua. Tirando uns e outros que estão fazendo questão de esfregar na cara dos coleguinhas que o ano foi ótimo, há de se admitir que para a grande maioria, aqui na terrinha e mundo afora, este foi um ano bem cagado. Desde 2001 e das subsequentes guerras que não tínhamos tanto medo do terrorismo. As cenas dos refugiados Europa afora cortaram o coração de absolutamente todo mundo que tinha coração, e aqui no nosso quintal a situação é de calamidade quase total: uma crise econômica palpável e duradoura, uma crise política que vai entrar pra história e que nos deixa quase que totalmente descrentes nos nossos governantes, um Eduardo Cunha passando as leis mais retrógradas e absurdas de que se tem notícia e, a cereja do bolo, um desastre ambiental sem precedentes que expõe o tamanho da sujeira e da falta de caráter sobre a qual estão fundadas muitas das grandes empresas do país. E o zika vírus, claro, não esqueçamos dele.

Esse são só os highlights, e eu também não estou aqui pra fazer retrospectiva. Essa você pode assistir na TV ou ler por aí, se tiver estômago. Estou falando de anos ruins – do meu primeiro ano ruim. Primeiro, Luiza? Aham. Primeiríssimo. Nem 2014, que eu passei metade com dor de cotovelo, foi ruim. Lembro de estar em Boipeba – linda, segura e cheia de dinheiro na conta – abraçada numa garrafa de espumante, olhando pros fogos e agradecendo pelo ano maravilhoso que se encerrava, cheia de esperança e projetos pro ano novo.

Ironia do destino ou não, dois mil e quinze começou a desandar pra mim em março, logo após o meu aniversário, assim que entrei no famigerado retorno de saturno. Foi como se, da noite pro dia, eu começasse a enxergar alguns furinhos, mínimos porém visíveis, no meu até então perfeito plano de vida. Daí pra frente, assim como acontece com aquelas boias de piscina gigantes em formato de baleia, os furinhos foram aumentando até que já não dava mais pra brincar.

Deu tudo tão errado pra mim em dois mil e quinze que todas as vezes que lembro da virada passada me dá vontade de chorar. Isso porque a crise – e o processo de saída dela, que felizmente no meu caso está envolvendo muita análise – faz acender uma luzinha imaginária, assim no alto da cabeça, tipo aquelas lâmpadas de capacete, que te faz enxergar tudo que já estava errado há muito tempo. E aí você se acha ingênuo pra caralho, burro pra caralho, despreparado pra caralho.

Mas aí reparem o tamanho da minha infantilidade: estou me sentindo validada por dois mil e quinze. Uma vibe: se foi ruim pra geral, claro que eu não ia escapar. Será que eu já estava destinada a ter um ano de merda ou permiti que isso acontecesse só porque o caos geral meio que me autorizou? Nunca saberemos, mas o fato que é um alento saber que estou no mesmo barco que muita gente. Bem que o IBGE podia fazer umas pesquisas mais subjetivos, né? Mas tenho a sensação de que, otimistas que somos, quando perguntados formalmente sobre a qualidade do ano, acabaríamos encontrando razões pra dizer que foi bom, sim. Até eu que estou profissionalmente perdida, endividada, insegura e meio careca estou achando motivos pra agradecer por dois mil e quinze.

A saber: neste ano estranho eu testemunhei dois casamentos que me devolveram toda a fé no amor, segurei no colo a filha de uma das minhas melhores amigas, fiz duas viagens inesquecíveis, lancei um livro com mais dezenas de jovens mulheres na Bienal, realizei o sonho da casa própria, adotei um cachorro depois de uma vida inteira sonhando em ter um, fiz amigos maravilhosos e me rendi à análise, que está ajudando tanto que nem sei.

No fim das contas, dois mil e quinze não foi o primeiro ano em que eu perdi ou fracassei. Mas foi o primeiro ano em que admiti ter perdido e fracassado, e aí reside uma grandisíssima diferença. Agora entendo essa necessidade de maldizer o ano, de desejar-lhe até nunca mais, de dançar em cima de seu túmulo. Não que o primeiro de janeiro vá consertar tudo que está errado, mas é uma promessa de novidade e mudança.

Porque eu sei que a gente pode mudar e recomeçar e reestruturar a vida inteira a qualquer momento, mas o tempo atropela a gente. O réveillon é um ritual de purificação e semeadura, a nossa primavera pessoal. Pelo menos pra mim. Sempre achei que essa fosse a festa mais importante do ano justamente porque é o momento de se vangloriar pelas metas alcançadas e sonhar com as próximas. Não sei como vou estar me sentindo nos últimos segundos deste dois mil e quinze vidaloka – é possível que aos 45 do segundo tempo eu resolva que ele de fato não foi ruim – mas, pela primeira vez em vinte e oito anos, a minha contagem regressiva vai ter um gosto meio amargo e trazer uma sensação de alívio.

Depois eu vou lembrar mais uma vez do Mussum e do Keanu Reeves e vou ter uma crise de riso de pelo menos cinco minutos, pra já entrar dois mil e dezesseis me levando bem menos a sério.

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