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O tempo das recompensas [ou por que tudo muda depois que terminamos os estudos]


Começa pequeno, quase instintivo: você aprende uma palavra nova e recebe em troca uma festa. Aprende a usar garfo e faca, festa. Aprende a ler e festa. Aprende a somar, subtrair, multiplicar e dividir — festa. E tudo certo, é assim que a banda toca mesmo. Aprender é uma festa e deve gerar orgulho tanto pra quem aprende quanto pra ensinou, que nesse caso da infância são os nossos pais.

Depois a coisa se intensifica um pouco. Notas boas começam a ser negociadas, seja em troca de coisas palpáveis ou de atenção e reconhecimento mesmo. Estou falando de um recorte social bem específico, o meu, aquele em que as crianças não se preocupam se vai ter comida na mesa, mas com qual será o destino das próximas férias. E estou falando de um tipo específico de criança: aquele que entende rápido esse mecanismo de recompensa e passa e confiar nele como um modelo de vida. A prerrogativa é simples: “se eu me esforçar e estudar bastante, vou tirar notas boas e realizar coisas e a minha família vai ficar feliz e me encher de elogios e recompensas.” Pra quem nasceu com dinheiro e tem facilidade de aprender, essa é a fórmula mágica da felicidade. Não tem erro, não tem furos e, mais importante, não tem espera.

O tempo das recompensas enquanto você ainda é estudante é muito curto. Todo ano você passa de ano, todo semestre tem férias, todo trimestre tem prova. Isso sem contar a troca de faixa no judô, a subida de nível no ballet, a medalha na natação. O primeiro lugar no concurso de redação, a boa classificação nas Olimpíadas de matemática, o elogio rasgado do professor na reunião de pais. Assim como o ratinho que vicia na água batizada com drogas pesadas, você vicia em ser o orgulho de todos ao seu redor, e o sistema segue funcionando sem falhas. Passou na faculdade dos sonhos? Churrasco! Ganhou bolsa por desempenho na faculdade dos sonhos? Viagem! Conseguiu bolsa pra estudar fora do Brasil? Mas é um gênio mesmo! Está namorando um cara igualmente inteligente e promissor? Olha que lindo, os bons se atraem.

E assim você segue firme nos trilhos do sucesso, rumo ao infinito, sem paradas pra repensar o trajeto. Pode reparar que esse tipo de pessoa geralmente emenda a faculdade numa pós ou num mestrado. Eis aí o primeiro sinal de glitch no bem azeitado sistema de recompensas da juventude. Nessa fase de fim da faculdade você provavelmente já está testemunhando o princípio da escassez de recompensas. Alguns amigos já passaram pelo último grande ritual da vida de estudante, que é a formatura (não por acaso transformada em algo tão grandioso quanto a cerimônia de entrega do Oscar), e estão meio que à deriva, tentando aprender a navegar sem rumo certo. Aí você que é esperto e inteligente arranja mais uma prova pra passar — e tome aplauso!

Não estou querendo dizer que todo mundo que segue estudando o faz por necessidade de aprovação de outrem — eu mesma não fiz só por isso — mas é fato que isso prolonga o sistema de recompensas rápidas.

Onde eu estou querendo chegar? Nem no debate sobre meritocracia e/ou entitlement, apesar de passar por aí também. Estou querendo chegar no season finale da quinta temporada de Girls. No primeiro episódio dos dois que compõem o finale, a Hannah encontra uma amiga que em tese conseguiu o mais difícil de tudo, que é passar com louvor e sem tropeços da vida de estudante pra vida profissional/adulta. Tallie já saiu da faculdade publicando vários livros, sendo aclamada pela crítica, colaborando com vários projetos e está retornando de um workshop cultuadíssimo. Nesse meio tempo a Hannah ficou totalmente sem dinheiro, teve uns três surtos psicóticos, uns muitos trabalhos “indignos” de sua formação privilegiada, alguns relacionamentos bem trágicos e dois casos de DST.

Ou seja, o sistema de recompensas da Hannah desmoronou completamente, enquanto o da Tallie seguiu funcionando às mil maravilhas. E, pra surpresa de quase ninguém, uma gostaria de ter o que a outra tem. Uma se acha um fracasso profissional e a outra precisa googlar o seu próprio nome todas as manhãs pra lembrar quem é essa personagem que ela inventou pra si mesma. É muito triste reparar que nessa fase imediatamente posterior ao fim dos estudos estamos todos nos definindo pelo que ainda não temos ou não fizemos. Não temos o emprego dos sonhos (e às vezes não temos nem um emprego qualquer), não publicamos um livro, não dirigimos um filme, não estouramos na novela, não somos alguém. Ou somos e não sabemos como fomos parar ali e nem ao menos nos reconhecemos, como a Tallie.

Pra além de ser uma das sequências mais tocantes e generosas da série, e um lembrete incontornável do quanto as amizades e a honestidade dentro dessas amizades são coisas importantes, toda a interação da Hannah com a Tallie me fez retomar a reflexão sobre o tempo das recompensas. Um grande amigo já tinha me chamado a atenção pra isso no ano passado, quando eu confessei que estava à deriva. Ele me lembrou que qualquer projeto agora ia precisar de amadurecimento, assim como a gente precisa de muito tempo pra amadurecer.

Aliás, fico impressionada com o quanto a gente se acha maduro aos vinte poucos, ainda na faculdade ou já saindo dela, e me dá uma pontinha de pena de quem ainda vai tomar o choque de realidade que vem aos vinte e muitos/quase trinta. Mas tem uma coisa: falta de aviso não é. Eu fui avisada time and time again e segui achando que eu era diferente, que eu era especial, que eu tinha um plano. A verdade é que quase ninguém é especial, e mesmo quem a gente acha que é muitas vezes está invejando o nosso anonimato, o nosso fracasso, o tempo que a gente ganhou quando resolveu admitir que não dá pra ganhar sempre.

No fim das contas é sempre um cliché. Quando você deposita todas as suas fichinhas de felicidade no orgulho que o outro vai sentir de você, fica muito fácil esquecer o que você gostaria de estar fazendo.

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