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Tudo aquilo que eu queria te dizer sobre o show da Letrux no Circo Voador


É sempre a história que me passa a rasteira. Como o encadeamento das coisas acaba invariavelmente sendo perfeito, mesmo que o caminho não faça absolutamente sentido algum. Não é o caso de Letícia. A apoteose de Letrux ontem, sexta-feira 13 de julho de 2018 no Circo Voador, faz absolutamente todo o sentido. No macro e no micro; no contexto cultural-musical-social carioca e na trajetória pessoal desta que vos escreve já perigando desandar a chorar tudo outra vez.

Mas vamos segurar o drop um pouquinho, como fez Letícia antes do refrão de algum hit que já não me lembro mais qual foi. Ah, a minha memória... Foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça quando as luzes apagaram, a banda entrou de mãos dadas e depois eis que surge Letícia, carregada no alto por dois fortões descamisados.

Eu faço planos muito mal; não sei traçar caminhos e enxergar muito longe. Mas ô se eu sei olhar pra trás. A história pra mim está sempre desenrolando numa espécie de fundo falso das cenas que acontecem em tempo real, e ela se estica e se mistura com todas as ficções que habitam em mim. Onde vocês enxergam Letícia entrando triunfante and poderosa sentada naquela banqueta masculina, eu enxergo a trajetória dela enquanto artista, a trajetória nossa (minha, dela, de vocês) enquanto mulheres nesses anos recentes de quarta onda do feminismo, e ainda a minha pequena e modesta trajetória enquanto ser humano desde que eu e Letícia nos esbarramos numa aula de astrologia em 2012. Seis fucking anos. Que estrago.

But I digress. Eu ia dizendo que me preocupei com essa primeira cena porque eu soube ali que ia precisar escrever sobre o show, e aí bateu aquela tensão jornalística básica: se eu parar pra anotar eu não vou viver isso aqui por inteiro, mas se eu não anotar as coisas vão vazar nesse vácuo de calor humano, maconha e catuaba em que eu me encontro. Nisso volta Letícia se arrastando nas quatro patas pro palco e, enquanto eu decido se abro o bloco de notas do iphone ou não, uma frase surge pronta na minha cabeça – “o que for importante vai ficar”. Foi o que a J. K. Rowling pensou quando teve a ideia pro Harry Potter num trem atrasado de Manchester pra Londres e não tinha nem papel e nem caneta pra anotar. O que é importante sempre fica.

Não deu nem tempo de sair desse mood britânicos, porque aí Letícia me traz Shakespeare pro palco e eu lembro que ela também fez letras e como isso transparece em vários pontos do show, não só nessas performances teatrais, mas também no inglês tão lindo que ela fala – não que importe o artista falar bem inglês, mas o inglês de Letícia é de fato lindo e ao mesmo tempo tão dela, tão pessoal. Acho fofo, me deixem, estou fã. Como não ser fã de alguém que ensaia uns acordes de “Bang Bang” antes de emendar na Lauren Hill e depois cita e. e. cummings (by way of Bjork, eu sei, mas o poema é dele). Accept all happiness from me. O tanto que isso é forte. O tanto que está contido nessa frase.

Por sorte eu quebrei meu protocolo de não filmar shows e timidamente levantei meu celular quando Letícia começou a bater papo sobre a loucura que é produzir pra sobreviver e depois compartilhar esse processo de cura e saber que ele cura também os outros. É o que eu faço, é o que tantos de nós fazemos, mas nunca vai deixar de ser um espanto pra mim também. E nessa hora mais uma vez o palco passou a ter várias dimensões – aquela que estava ali na minha frente e também o fim do Letuce, o fim do meu pseudo-casamento, o fim de tantas coisas que pareciam tão sólidas em 2012 e que em 2015 estavam escangalhadas. Nessa hora, aos prantos, eu também estava pensando no quanto que eu admiro essa habilidade de Letícia de ser ao mesmo tempo absurdamente confiante e segura, e ainda assim tão generosa.

Bota na tua cabeça que isso aqui vai render // Accept all happiness from me.

Dá vontade de tatuar uma em cada pulso.

Aliás, lembro que quando saiu o disco solo eu disse pra Letícia que estava na contramão de todos que não paravam de falar de “Ninguém perguntou por você”, porque a minha favorita era a primeira, “Vai render”, e ela disse que era bom saber e que ia contar pro parceiro dela nessa música, porque ninguém estava falando muito dela ainda. Bom, acho que o jogo virou não é mesmo?

“Vai render” é melhor música de volta por cima que já houve, não tem outra, podem procurar. E ela coincidiu – o Climão inteiro coincidiu, na real – com a minha volta por cima pessoal. E coincidiu ainda, arrisco dizer, com uma fase nossa, feminista, de pequenas importantes vitórias. O disco inteiro bate pra mim como uma consagração, como uma celebração daquilo que acontece quando a gente olha pra dentro sem medo de abraçar as coisas mais feias, sem medo de perder. Tudo que Letícia fez nesse processo de cura que resultou no Climão eu também fiz. Análise, alinhamento espiritual, astrologia, tarô, me cercar de mulheres incríveis. Existe um zeitgeist feminino and feminista em torno desse disco e eu acho que muitas de nós chegamos a algum lugar junto com ele. Ciclamos. Benzadeusa.

O que me leva ao segundo momento de choro desenfreado da noite, porque às vezes eu tenho certeza de que a Letícia anda circulando pelo meu baú de coisas preciosas. Eu não vou reproduzir a letra inteira de “Ray of Light” aqui porque não convém, mas vou dizer apenas que é um dos poemas mais lindos que eu conheço e que tem tudo, tudo, tudo a ver com a história que eu estou tentando contar aqui. Faster than the speeding light she’s flying / Trying to remember / Where it all began […] / She’s got herself the universe. Está. Tudo. Conectado. E eu não sei vocês, mas poucas coisas me emocionam mais do que essa sensação de que está tudo conectado. Nos shows de Letícia ela sempre vem.

Curiosidade básica aqui, porque eu sei que Letícia ama coincidências com datas: o The Miseducation of Lauren Hill e o Ray of Light são ambos de 1998, ano incrível que também nos deu o Celebrety Skin, do Hole. Em 1998 eu tinha 11 anos e estava começaaaando, assim bem devagar, a virar gente. Eu comprei e ouvi esse disco da Madonna, como tantos outros, sem entender muito bem o que ela estava dizendo, mas sentindo todas as letras como se eu soubesse que a vida ia cuidar de me fazer passar por tudo que eu precisava passar para que eu as compreendesse. E para que elas me curassem, exatos 20 anos depois, sob a lona sempre aconchegante do Circo Voador.

Fôlego, Luiza, porque depois disso ainda teve Linn da Quebrada dizendo tanta coisa importante que eu não vejo a hora de rever essa parte. No discurso dela sobre ser bela ou ser engraçada, eu lembrei de uma cena do Eu, você e todos nós, filme da Miranda July em que ela diz que gostaria de ser só um pouquinhozinho mais bonita, porque aí ela não teria que convencer as pessoas da beleza dela. Algo assim. Fiquei com essa cena tatuada na memória, porque ela é de uma tristeza tão profunda, e de uma honestidade também. Na voz poderosa da Linn esse assunto ganhou contornos mais políticos e mais escrachados, e foi tão potente. Aliás e ainda sobre a Linn: quando sai no Spotify o cover da Angêla Rorô?

Bom, acho que já mandei a cronologia dos fatos pra casa do caralho, então encerro com algumas notas que não renderam parágrafos inteiros, mas que eu não queria deixar de dizer:

(1) a parte favorita do show para o meu namorado super hétero e que não conhecia muito bem a banda foi a participação do Tô Coxona em “Que Estrago”. Perguntei se ele tinha entendido direitinho a letra e ele disse que sim, super. Achei um fofo sinal dos tempos. (2) A mãe de Letícia também é pisciana – deve ter chorado mais que eu. (3) Que delícia foi cantar aquele parabéns pra você. (4) A entrada final, com todos os músicos e convidados especiais no palco, me lembrou muito aquele clássico encerramento de espetáculos de ballet, em que todos voltam à cena, fila por fila, os aplausos incessantes e aquela sensação indescritível de ter participado de algo imenso, coletivíssimo e ao mesmo tempo dependente da dedicação e da empolgação de cada serzinho presente.

Me lembrou o ballet porque eu fiz ballet, claro, e já estive ali naquela massa suada e alegre no palco ao fim de um espetáculo inesquecível. Impressionante como é sempre sobre a gente, mesmo sendo sobre o outro. Valeu mesmo, Letícia. No fim da minha história você vai figurar em zilhares de capítulos. E olha que nem coube aqui a parte em que “Tuna Fish” acabou inspirando a minha dissertação de mestrado. Outros tempos também, beleza. Estamos tão melhores agora.

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