Toda vez que eu tento explicar numa conversa casual por que eu gosto tanto de documentários, as palavras me fogem de leve. Sinto que não consigo transmitir para o meu interlocutor o tamanho desse gostar. Justamente por isso, já ensaiei este texto algumas vezes, mas nunca tinha chegado às vias de fato. Bom - tudo indica que agora foi.
Como sempre, no instante em que começo a cutucar um assunto querido pra mim, descubro que suas raízes são mais profundas do que eu imaginava. Achei que essa história começasse no iniciozinho dos anos 2000 com “Promises” (Promessas de um Novo Mundo, 2001) e “Bowling for Columbine” (Tiros em Columbine, 2002), mas, pensando bem, existe um antes.
Eu me mudei de São Paulo para Vitória no início dos anos 90, aos 5 anos. Passamos um tempo longo (uns dois anos) na casa dos meus avós maternos enquanto subia o edifício Juan Miró, que viria a ser meu ninho com mamãe. A essa altura, minha avó Dulce já tinha criado quatro filhos, ajudado meu avô a construir uma carreira de sucesso e viajado o mundo com suas comadres. Dali pra frente, dizia ela, só queria saber de lagartixar. O que significava se acomodar numa grande poltrona estilo lazy-boy, abrir um pacote de biscoito de polvilho ou guloseima similar e zapear os muitos canais da TV à cabo em busca de uma partida de vôlei ou um show de talentos. Pra mim, até hoje, e provavelmente por causa dela, o jeito mais simples de ser feliz é sentar na frente da TV com uma comida gostosa no colo - obviamente depois de cumprir com todas as tarefas do dia, o que vovó já tinha feito pra uma vida inteira.
Devo ter ficado mal acostumada, porque assim que nos mudamos para o apartamento novo, lembro do pessoal indo instalar a Globosat. Desse aparente pequeno detalhe decorrem muitas coisas importantes na minha vida. Imaginem que para uma pisciana introspectiva, filha única, recém chegada numa nova cidade, a TV era uma companhia. Os bichos do Discovery Channel, os apresentadores de programas de culinária. Com 8 anos, todo mundo via o programa da Xuxa. Eu via campeonato de esgrima na Espn, documentários sobre as sociedades pré colombianas no Discovery e séries adultas demais pra minha idade na Warner. Engraçado que, mesmo tendo todos os canais infantis, tipo Cartoon, Nickelodeon e Disney Channel, essa nunca foi a minha praia. Gostei de pouquíssimos desenhos ao longo da vida e, até hoje, não sou grande fã de animações em geral. Mesmo no papel, apenas uma ou outra graphic novel me pega. Tem alguma coisa a ver com a estética do desenho, acho. Perde a humanidade, e aí eu perco o interesse. Não é juízo de valor não, heim - é gosto pessoal.
Mas é isso, sigamos; ou o preâmbulo vai ficar maior que o assunto em si. Pra encerrar essa pré-história da minha relação com documentários, acho que basta dizer que eu vivi o nascimento dos reality shows. “The Real World”, na MTV, quem lembra? A minha cabeça de 12 aninhos acho que explodiu. “Survivor”, “No limite”, o primeiro “Big Brother”… eu estava lá todo esse tempo, acompanhando vidrada aquele pastiche de real. É ou não é? Como filmam? Verdade ou mentira? Quem está contando a história? Tudo isso me fascinava. Da mesma forma, os primeiros programas de culinária. Jamie Oliver, Nigela & cia - chegar do colégio e ligar a TV pra encontrar com eles era como chegar numa festinha com amigos de longa data. Relaxante, aconchegante, pacífico.
Corta para 2001. Acho que perdi de vez a minha inocência no dia em que caíram as torres gêmeas. Eu tinha 14 anos e cheguei da escola já com a coisa toda desenrolando ao vivo na TV. Troquei de roupa e fui correndo, no impulso, pro curso de inglês, mesmo que a minha aula fosse só bem mais tarde. Minha professora era americana, vários professores e funcionários também. Não teve aula; passamos o dia sentados no salão comum do curso assistindo CNN, consolando os que não estavam conseguindo falar com parentes, testemunhando aquela mudança toda de paradigma. Pela primeira vez entendi que a vida podia mesmo ser mais estranha que a ficção, e ao mesmo tempo era difícil acreditar que aquilo estivesse de fato acontecendo.
Pouco tempo depois, zapeando nos canais de filme, eu acabei assistindo a “Promises” (Promessas de um Novo Mundo, 2001), um documentário premiado que acompanha crianças palestinas e israelenses que moram em comunidades palestinas na Cisjordânia e seus vizinhos israelenses de Jerusalém. Lembro de ter chorado de desespero. As crianças brincam, jogam bola e claramente desejam se amar e se amigar. Mas, no fim, numa roda de conversa, não chegam a lugar nenhum. “Seu tio matou meu primo”, “meu avó morreu por culpa do seu povo”... é devastador e, naquele momento, era a história acontecendo. Lembro de ter levado o assunto para todos os lugares. Circulei na revistinha da Globosat os dias que o filme passava e fui botando todo mundo pra assistir.
Nessa mesma época, não me lembro se no cinema ou baixado, assisti ao “Bowling for Columbine”, obra-prima (minha opinião) do Michael Moore. Aquela sequência inicial dele abrindo uma conta no banco e saindo de lá com um rifle de brinde é uma aula express de cultura americana e de construção de roteiro em documentários. Daí pra frente, viciei. Comecei a prestar atenção nas listas de melhores docs do ano, passei a frequentar essa seção da locadora com mais frequência e a pedir indicação pra quem entendia. Conheci Eduardo Coutinho, Werner Herzog & cia.
Outra memória muito doce que tenho dessa minha história com documentários é de 2005 ou 2006. Eu recém chegada no Rio, poucos amigos e muito tempo sobrando para o meu passatempo favorito: zapear. Acabei assistindo a um doc chamado “Riding Giants” (Riding Giants: No limite da Emoção, 2004), sobre surfistas de ondas gigantes. Nada de transcendental ali, mas me tocou pela coragem dos envolvidos. Até então eu não tinha conexão alguma com surfe, mas minha mãe estava namorando um cara que surfava (e que logo veio a ser meu padrasto), e eu acabei me matriculando numa aula de surfe no semestre seguinte.
O que me lembra de comentar os dois tipos de reação que documentários me causam. Acho que de um lado existe aquela sensação deliciosa de estar descobrindo/aprendendo algo novo e muitas vezes surpreendente, que é mais comum em docs com uma pegada mais etnográfica. Aquela vibe “Uau, isso existe. Isso é diferente, lindo, distante, fascinante, bizarro”. Por outro lado, em docs mais biográficos, tem aquela sensação de encantamento com o biografado e, pelo menos pra mim, de incentivo, de vontade de ser uma pessoa digna de filme um dia: “Uau, que vida incrível. Quantas realizações, quanta superação. E eu? O que eu estou fazendo pelo mundo?” É isso que me faz chorar em todos os episódios de “Chef’s Table” (Netflix, 2015), por exemplo.
O que me leva à última escala deste texto, que já extrapolou todos os limites do aceitável a nível de número de palavras na época do smartphone. Os anos 10 do século XXI e os serviços de streaming popularizaram um novo tipo de documentário: as séries documentais. Divididas em alguns episódios, elas estão se multiplicando como coelhos, para nossa alegria. Nem todas são boas, claro, mas o formato é ótimo e aparentemente inesgotável. Pelo que tenho visto, a nova galinha dos ovos de ouro da produção audiovisual é a série documental criminal-bizarra, que tem como exemplo perfeito “Wild Wild Country” (Idem, 2018), sobre a ascensão e queda da cidade utópica de Rajneeshpuram e do guru Osho. “Wild Wild Country” é tão boa que deu cria. “Tiger King” (Idem, 2020) segue a exata mesma receita de bolo, apesar de ser sobre um tema completamente diferente: malucos(as) que curtem ter animais selvagens como pets e descobrem que isso pode ser um negócio lucrativo. A montagem, o ritmo, a estrutura - é tudo igual. O que não diminui a delícia de “Tiger King”, mas evidencia a produção em série que as plataformas de streaming têm feito de alguns produtos. Não reclamo, visto que sou consumidora assídua, mas também não coloco no mesmo patamar de grandes documentários autorais. É o McDonald's do gênero - e eu amo um chicky nuggie.
Dito tudo isso (e ficou tanta coisa por dizer - por exemplo, como eu tive durante anos um poster de “Man on Wire” no meu quarto), segue abaixo uma lista dos meus documentários favoritos de todos os tempos, com links (sou uma mãe or what?) pro Just Watch, que é um guia de streaming, pra vocês saberem onde assistir. E tem sempre o torrent, né. Muita coisa no youtube também, viu? Aliá, o perfeitíssimo “Cidade Invisível”, que inclusive resenhei aqui quando saiu, do amigo Terêncio Porto, está no youtube. Assistam. E me recomendem coisas que não estão nessa lista.
13th (Ava DuVernay, 2016)
Amy (Asif Kapadia, 2015)
As praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)
Blackfish (Gabriela Cowperthwaite, 2013)
Bowling for Columbine (Michael Moore, 2002)
Buena Vista Social Club (Wim Wenders, 1999)
Cidade Invisível (Terêncio Porto, 2018)
Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002)
Elena (Petra Costa, 2013)
Estou me guardando para quando o carnaval chegar (Marcelo Gomes, 2019)
Exit through the gift shop (Banksy, 2010)
Finding Vivian Maier (Charlie Sisker; John Maloof, 2014)
Free Solo (E. Chai Vasarhelyi; Jimmy Chin, 2018)
Grizzly Man (Werner Herzog, 2005)
Into the inferno (Werner Herzog, 2016)
Jiro: Dreams of Sushi (David Gelb, 2011)
Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007)
Low and Behold: Reveries of the Connected World (Werner Herzog, 2016)
Man on Wire (Philippe Petit, 2008)
Maya Angelou: And Still I Rise (Rita Coburn Whack, Bob Hercules, 2016)
Menino 23 (Belisário Franca, 2016)
Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Masagão, 1999)
OJ: Made in America (Ezra Edelman, 2016)
O Processo (Maria Ramos, 2018)
Passaporte Húngaro (Sandra Kogut, 2001)
Paris is Burning (Jennie Livingston, 1990)
Pina (Wim Wenders, 2011)
Promises (Carlos Bolado; Justine Shapiro; B.Z Goldberg, 2001)
Riding Giants (Stacy Peralta, 2004)
Senna (Asif Kapadia, 2010)
Soldados do Araguaia (Belisário Franca, 2018)
The thin blue line (Errol Morris, 1988)
What Happened, Miss Simone (Liz Garbus, 2015)
Wild Wild Country (Chapman Way; Maclain Way, 2018)