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O Rio de Janeiro é mesmo mais estranho que a ficção (ou uma resenha sobre “Cidade Invisível”)


Meu tipo favorito de ficção hoje é o documentário. Daí vocês vão dizer: mas heeeeim, Luiza? Aham, é isso mesmo. E digo isso já passando pro próximo assunto porque eu não estou aqui pra dar essa aula sobre as zonas cinzas dos gêneros cinematográficos/literários.

Rapidinho então, porque eu não resisto: a história pertence a quem conta, mesmo quando ela é história mesmo, essa que ensinam na escola e nas universidades. Cês tiveram essa aula, né? Aposto que sim, porque os professores de história são sempre ótimos. Ok então, sigamos.

A breve história do Rio que Terêncio Porto e Adriana Nolasco contam com o seu tragicômico Cidade Invisível poderia ser extremamente datada. Só que não o é. Em parte por conta da sagacidade da dupla, em parte porque o Rio de Janeiro colabora and muito. Explico: o filme é fruto de um edital que apoiava projetos audiovisuais que tratassem dos 200 anos da chegada da corte portuguesa no Rio. Isso lá em 2007, mais de uma década atrás, quando o assunto do momento era o Pan. Grande parte das imagens do longa foi feita nessa época, e acho que a relevância do filme hoje já é em si assunto para um texto inteiro, e quem sabe para um doc sobre o doc.

Mas fato é que Cidade Invisível funciona justamente porque parte da realidade para contar uma história do Rio que é extremamente surreal e balizada pela experiência de Terêncio e Adriana com a Cidade. O foco é na esquizofrenia do carioca – nessa capacidade de sermos ao mesmo tempo detratores e exaltadores do Rio. Um dia vira-latas, noutro porta-bandeiras. Quem dá esse norte é o sensacional tiozinho da praia, um desses profissionais da areia que trabalham servindo turistas e bem nascidos em Copacabana.

Descrevo o personagem porque não lembro seu nome, porque no filme não há cartelas identificando quem fala. Apenas ao final os personagens são nomeados, lado a lado, sem hierarquia, como figurinhas no álbum da copa. Achei essa estratégia inusitada e genial, porque na real não importa tanto quem fala, ou melhor: não importam as credenciais de quem fala. Foco na cidade, foco na história.

Pois que esse tiozinho da praia resume bem a nossa loucura. Ora aponta para o nascer do sol extasiado, exclamando que não existe no mundo cidade mais maravilhosa que o Rio, ora aponta pra favela que desponta por entre os prédios da Vieira Souto e pergunta se a câmera está filmando o “absurdo”. Quando questionado por Terêncio sobre o absurdo, ele logo desconversa, aponta novamente para o nascer e devolve algo como “que absurdo o quê, olha pra isso”.

O tiozinho da praia também dava um documentário inteiro.

Aliás, é nas cenas em que ele participa que outra estratégia narrativa/persuasiva fica mais evidente – as repetições. Em vários momentos do filme você é atacado por uma sensação de deja vú, e isso acontece não apenas porque entra década sai década e as bizarrices do Rio permanecem, mas também porque Terêncio e Adriana pinçam algumas frases proferidas por seus objetos e as repetem bastante, em vários momentos do longa, numa espécie de hipnose. Posso dizer que comigo super funcionou, e funcionou muito num clima de contação de histórias, que tem tudo a ver com o livro que inspira o título e fornece a epígrafe/epílogo do filme, que no caso vem a ser um dos meus livros favoritos da vida, o Cidades Invisíveis, do Ítalo Calvino. Vou deixar a citação aqui porque tenho a sensação de que vai puxar o seu tapete também:

"De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas as respostas que dá às nossas perguntas."

Numa das minhas sequências favoritas, que poderia ser a nova entrada de dicionário para o termo “tragicomédia” (junto com a cena da corretora imobiliária “vendendo” o bairro da Península), saímos de um monólogo longuíssimo do playboy profissional, que discorre sobre a síndrome de VIP do carioca, para entrar – corte seco – num chopinho com o escritor intelectual, durante o qual ele descreve com precisão essa esquizofrenia mórbida que acomete o carioca, além de desconstruir o arquétipo do malandro cordial que nos define. A sala inteira foi das gargalhadas histéricas ao silêncio sepulcral em 3 minutinhos.

Que montagem, coleguinhas. Que montagem

Tudo isso para culminar num final que parece ter sido encomendado, em que dois homens negros e pobres seguram um pedaço desengonçado de papelão do lado de fora de algum evento do Pan (para cuja festa pobre eles definitivamente não foram convidados, diga-se de passagem). Estão animadíssimos, contentes, segurando o triste cartaz onde se lê:

“Rio 2007. O Pan do Brasil só aqui na cidade mais bonita do mundo.”

Talvez, mais do que esquizofrênico, o carioca seja mesmo Pollyana. Ou ser Pollyana é efetivamente o que nos impede de enlouquecer.

Só sei que, tempos de narrativas roubadas e deturpadas, de Bolsonaros e fake news, nada faz mais sentido do que essa leva de documentários com muita assinatura (me veio à cabeça o também recente O Processo, de Maria Augusta Ramos, sobre o golpe).

Que tomemos as rédeas e contemos as nossas histórias, amigos, ou outras serão contadas no lugar.

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