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Lições da estrada, parte II: nunca tenha preguiça de fazer amigos


Acho sempre muito esquisito quando alguém me confidencia com um certo orgulho que pode contar nos dedos de uma mão os amigos verdadeiros que tem. Olha, eu defendo sempre o direito de se viver a vida como bem se entende, mas não consigo enxergar onde está o feito em se ter poucos amigos. As pessoas são diferentes, claro, e há quem seja mais introvertido ou extrovertido, mas é que fazer amigos é uma das minhas missões mais importantes aqui neste planetinha, eu acho.

Mais de uma vez eu já me peguei reclamando no telefone com a minha mãe que estava exausta, mas que estava me arrumando pra sair de casa pra ir ao lançamento do filme de fulano ou ao aniversário do sicrano, porque simplesmente não poderia faltar, sendo fulano e sicrano amigos tão queridos. Ela sempre me diz que eu tenho amigos demais. E eu sempre dou um jeito de fazer mais alguns.

Geral gosta tanto de dizer que a vida é a arte do encontro, mas geral esquece que esse encontro não é só no sentido romântico da coisa. Quem já passou por um término desses de fazer parar a vida sabe. A sua família geralmente está ali pra suavizar a queda, mas quem enfrenta os meses de fossa e insegurança com você são os amigos. Quem te tira de casa quando você está chafurdando a lama também. Tem aquela velha (e pertinente) história dos amigos serem a família que a gente escolhe, né? Pois é. Sou de famílias grandes.

E eis que viagens são sempre uma oportunidade pra exercitar essa arte do encontro, mesmo quando você chega desconfiada e com um pouco de preguiça. Foi o que aconteceu comigo dessa última vez.

Embarquei pra Las Vegas preocupada com o dólar, estafada das semanas que antecederam a viagem e me sentindo a pessoa mais feia do mundo por conta do que na época eu estava classificando apenas como “uma queda de cabelo um pouco anormal”. Também estava muito desconfiada acerca do final de semana que se seguiria. Eu tinha muito pouco ou quase nenhum contato com as mulheres que estariam na despedida de solteira e, pra ser bem sincera, achava que estava caindo de para-quedas no meio de uma galera muito diferente de mim.

O bom de criar expectativas é que a vida sempre dá um jeito de te fazer morder a língua bem rapidinho. Fui a primeira a chegar na sexta-feira e passei o dia descansando e evitando me olhar no espelho. Quando fui à piscina quase morri de calor, mas não mergulhei porque estava com vergonha de molhar o cabelo, já que com ele molhado ficava mais difícil de disfarçar o quanto ele estava murchinho.

No fim do dia a noiva chegou e, um pouco mais tarde, as quatro primas dela que eu pouco conhecia. Lembro de abrir a porta e enxergar apenas uma das quatro, linda, muito bonita mesmo, com o cabelo mais incrível que eu tinha visto nos últimos tempos. Bem loiro, cheio, ondulado, num corte chanel desestruturado. Fiquei ao mesmo tempo feliz de constatar que as meninas pareciam ser bem legais e triste porque eu queria tanto estar me sentindo bonita, com o cabelo “normal”.

Segundos depois que terminamos de nos apresentar a noiva comentou o quanto o cabelo da prima estava lindo, e aí eu aproveitei pra enfatizar que realmente, uau, que cabelo. Foi quando eu descobri que a dona do cabelo estava se recuperando de um câncer super agressivo. Que ela tinha sido desenganada pelos médicos menos de um ano antes e que estava ali na nossa frente graças a um clinical trial que deu certo. Como vêm rápido as lições às vezes, né? Eu estava ali me sentindo um lixo e deixando de aproveitar completamente uma viagem que tinha sido tão planejada e tão esperada só porque meu cabelo não estava tão lindo, enquanto a Stefanie havia passado o ano anterior achando que não estaria viva pra ir ao casamento da prima.

Daí pra frente foram 10 dias de muitos encontros. Conhecer gente nova me dá uma fome de realização tão grande. Ouvir novas histórias de vida e falar da minha com calma, testemunhar uma conexão sendo feita, sentir aquele sentimento melhor do mundo que é ficar feliz com a felicidade de alguém ou se relacionar com a dor da pessoa. Empatia, né? Essa palavra mágica.

Um dos pontos de partida da minha dissertação de mestrado é um trecho de um ensaio do escritor chileno Alberto Fuguet que fala justamente de empatia, mas aplicada à arte. Vou deixar aqui porque tem tudo a ver com o que estou falando e serve de epígrafe pra parte III deste relato de viagem.

“Sutil, quase silencioso, o filme estava me jogando em uma nova era. Uma era em que as fronteiras encontram-se menos explícitas e as influências tão globais que acabam criando um novo tipo de artista: não o sujeito de nenhum lugar mas, ao contrário, o sujeito do aqui e agora. Essa nova sensibilidade artística, me parece, tem menos a ver com nacionalidade e mais a ver com empatia. Em vez de buscar captar a essência de uma aldeia para nos mostrar o mundo, essas almas globais estão, talvez, buscando compreender a essência do mundo e, dessa forma, nos ajudando a desconstruir e, mais importante, dar importância à nossa própria aldeia.”

De volta ao Rio e tendo que lidar com uma crise de ansiedade sem precedentes e a notícia de que a minha “queda de cabelo meio anormal” é na verdade bem mais complicada do que parecia e vai me custar uns três meses de doses altíssimas de corticoide, fico repassando na minha cabeça não só a história da Stefanie, mas também a da Juliana, que topou organizar uma viagem inteira tendo uma das rotinas mais aceleradas do mundo; a do Diogo, que largou tudo aos mais de trinta pra tentar dar certo num lugar gelado; a da Ushi, que se recusa a ter uma cidade só e vive de porto em porto; a da Jess, que também escolheu essa profissão escorregadia que é a escrita; e a do Jason, que é uma aula ambulante de autoestima.

Eu tenho mania de buscar coragem na ficção, e tudo bem, porque funciona. Mas esses dias tenho tirado força das histórias bem reais dos meus amigos, novos e velhos. Vocês seguram uma barra que nem calculam.

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