Uma foto do poço do marimbondo roubada da internet e que não faz a menor justiça à beleza do lugar
Eu me orgulho muito de ser precisamente da última geração que se lembra do mundo offline. Acho que pertencer a esse grupo de transição me fornece não só skills importantes, mas também uma noção subjetiva de mundo que é bem confusa, pra ser sincera, mas também muito única, e eu gosto dela. Encho a boca pra dizer que mochilei sem celular e sem notebook em 2007/2008, ligando pra casa de orelhões a cada dois ou três dias e usando internet no albergue de vez em quando, apenas pra subir aquela ocasional fotinho no fotolog. Sou da geração Winamp/Napster, usei internet discada, you know the drill; não preciso contar essa história.
Importa aqui que estamos fazendo trinta, amigos migrantes digitais. E por mais guardiã da tecnologia e defensora dos poderes benéficos da internet na vida das pessoas, eu estava fazendo trinta com a sensação de que estar offline me causava uma certa angústia. Estava tendo dificuldade para terminar de ler livros, para assistir a filmes inteiros sem perder o fio da meada por causa do smartphone, e aí acendeu uma luzinha vermelha aqui.
Pra encurtar umas história meio longa, porque o que importa realmente está por vir, resolvi subir sozinha pra Mauá no final de semana do meu aniversário e desligar o celular. Quem me lê há algum tempo sabe que eu aceito porém sou contra a alternativa de simplesmente não ter redes sociais. Acho complicado existir contemporaneamente e interagir com o mundo estando fora desse circuito, mas acho que é imperativo que cada um aprenda a usar esse ambiente como melhor lhe convém. Tem que encontrar o equilíbrio, como em tudo na vida, e depois de anos esfregando na cara de geral que eu estava deboas com o meu nível de uso das redes, percebi que a minha balança estava pendendo prum lado só.
Começamos já com uma ironia gigante: não fosse o facebook e a minha ~intensa~ presença digital, eu não teria ido parar na melhor pousada de Mauá – ou pelo menos não na pousada mais perfeita pra mim. Foi num post estilo “classifeice” que o Paulo, amigo da faculdade que há mais ou menos um ano resolveu se instalar em Mauá, indicou a Naturalmente. Foi a segunda pousada para qual liguei e em menos de cinco minutos de conversa com a Celeste, que é a proprietária junto com o marido, Albino, fechei negócio.
A subida foi desastrosa, mas deu início a uma série de coincidências do mundo offline que só podem ter acontecido para me convencer, e para que eu espalhasse a mensagem, de que a gente precisa confiar mais nas pessoas e no poder da atração. Porque olha. Eu enchi a cara na quinta-feira, né? Lógico. Nada como uma viagem marcada pra te fazer exagerar na noite anterior. Combinei de receber abraços dos amigos no Colab, atual melhor bar do Rio, e terminei a noite três gin tônicas e algumas heinekens depois, com a galera do bar perguntando qual drink eu queria ganhar de aniversário. “Aquele mate delicioso da casa com rum”, respondi. E acordei abraçada na privada, claro.
Eu tinha que sair cedo, porque não estou acostumada a pegar estrada e não podia anoitecer. São pouco mais de três horas do Rio pra Mauá, e eu ainda precisava fazer a mala, arrumar minimamente a casa pra amiga que iria ficar cuidando da Kate e ainda buscar no Leme o carro que um amigo tinha me emprestado. Fiz isso tudo nas janelas de mais ou menos 20 minutos de não enjoo que cada vomitada me garantia. Queria de presente de 30 o meu fígado dos 15, será que rola?
Quando finalmente parei num posto de gasolina pra comprar cheetos, coca-cola, cigarros e tirar dinheiro, descobri que não estava com o meu cartão do banco. Passou aquele filminho rápido na minha cabeça e eu sabia exatamente qual era a localização do cartão: bolso direito da calça jeans da noite anterior, amarfanhada dentro do cesto de roupa suja. Malditas gin tônicas. Voltei ao JB pra resgatar o cartão, xingando todos que cruzaram o meu caminho. Também esqueci de tirar dinheiro – guardem essa informação.
Cheguei à Naturalmente já bem mais calma e mais feliz, graças a três horas de trilha sonora bem escolhida. Grande bônus de viajar sozinha, inclusive: ser dona da playlist. Descarreguei o carro, conheci pessoalmente a Celeste, que assim como eu adora jogar conversa fora, contei do meu aniversário e da decisão de estar offline e pedi indicação pra comer ali por perto. Albino, que àquela altura tinha se juntado a nós, sugeriu uma pizzaria com forno à lenha que ficava a uns 700 metros dali. No breu, no meio do mato, numa estradinha de terra. “Eu te empresto uma lanterna”.
Avisei mãe e namorado que estava viva, desliguei o celular, guardei numa gaveta e jurei não encostrar mais no bicho até domingo. Tomei banho e saí no escuro. Não fui comida por nenhuma onça, ufa, e encontrei a pizzaria sem maiores percalços. Restaurante fofo, taça de vinho, pizza e eis que começa a trovoar alto. Raios. Cabum! Guarda-Chuva obviamente eu não tinha. “Tem chovido todo dia a essa hora”, me disse a garçonete depois de flagrar minha cara de pânico. Resolvi relaxar, mas aí comecei a me dar conta de que tinha esquecido várias coisas na correria da ressaca e da fome. Tinha largado meu livro na pousada e não havia sequer um bloquinho de notas na minha bolsa. Eu já jantei muito sozinha nessa vida, mas tendo um celular na mão é outra coisa. Tendo um livro é outra coisa. Tendo um moleskine você passa por escritor/jornalista de (quase) respeito. Mas sem nada, rapaz. Sem nada é meio tenso. Achei finalmente uma caneta e aproveitei que por cima da toalha de mesa havia uma daquelas toalhas de papel, e então fiquei ali rascunhando. A chuva demorou e só caiu no instante em que eu girei minha chave na porta do chalé. Não sei que horas fui dormir essa noite, mas tenho certeza que foi antes das 22h.
***
Eu nasci dia 11 de março de 1987, uma quarta-feira, às 9h da manhã. Sol em peixes, ascendente em escorpião e lua em leão. Claro que sou esotérica, e claro que queria fazer um ritualzinho às 9h da manhã naquele jardim maravilhoso da pousada. Mas sem relógio complica, né? Saquei pelos programas da TV do quarto e pelo sol que acordei umas 7:30. Dei uma volta, sentei, mentalizei umas coisas e fui tomar café achando que eram quase 9h. Eu era a única ocupante da pousada nesse final de semana pós carnaval, e claro que a mesa de café parecia um banquete de hotel 5 estrelas. Celeste me deu bom dia e disse que ia pegar sei lá o quê na cozinha. Voltou com um bolinho de banana com uma vela acesa espetada no meio e Albino na sua cola. Juntos eles me cantaram parabéns pra você exatamente às 9 horas da manhã do dia do meu aniversário de trinta anos (eu espiei o relógio porque senti a confluência de energias). Fiz meu pedido tendo certeza absoluta de que o cosmos estava escutando e tomei um café da manhã desses memoráveis, conversando com os dois sobre filmes americanos, tradução e estudo de línguas estrangeiras.
Depois saí pra um conjunto de cachoeiras que fica dentro de uma propriedade particular, o Alcantilado. Custava 16 reais pra entrar na reserva, adivinhem quanto eu tinha na minha carteira? Dezessete. No meio da trilha cruzei com uma família paulistana bem típica – Pai, mãe, avó, duas filhas. Uma das meninas destoava do grupo – era a única de all star em vez de tênis de academia, e quando me aproximei reparei num pentagrama reluzente pendurado no seu pescoço. Abri um sorrisão pra ela e mandei “Que lindo seu colar, tenho um igual”, ao que ela sorriu furtivamente de volta. Quando chegamos ao mirante mais alto da trilha, o pai dela gritou “Fora Dilma” na direção do vale. Eu gritei “Fora Temer”. Sorrimos cúmplices de novo.
Na volta, perguntei pra Celeste se dava pra sacar dinheiro no centrinho da cidade. Não dava, mas ela me emprestou 40 reais e adicionou ao valor final da minha conta, simples assim. Estávamos no comecinho da tarde de sábado e eu queria muito encontrar o Paulo, o amigo que havia me indicado a pousada. Mas como, se eu havia prometido não olhar o celular? Juro que ponderei muito, quase sofri, mas resolvi que iria ligar, ignorar todas as notificações que pipocassem, enviar a mensagem pra ele e desligar de novo. Fiz exatamente isso e deitei na cama pra relaxar da caminhada puxada da manhã. Não passaram nem 10 minutos e a Celeste apareceu gritando da varanda: “Luiza, o Paulo tá aqui perguntando por você!”
Não era possível. Só se ele morasse do lado. Me vesti correndo e já saí do chalé com aquela cara de COMOASSIM, ao que ele respondeu que estava sem internet, fazendo mudança de uma casa pra outra e que só tinha passado pra ver se por acaso eu não estava ali. E eu estava. E descobri que ele estava se mudando pra uma casa que é da Celeste, há uns 400 metros da pousada. Estavam com ele a Camila, sua esposa, e a Renata, que também fez letras com a gente. Combinamos que eu iria turistar um pouco no centrinho e depois voltar pra jantar e tomar um vinho com eles. Tudo sem zap zap, tudo sem hora marcada. Pergunta se eu fiquei ansiosa? Claro que não.
Turistei, comi uma tapioca de truta com queijo canastra e alcaparras que soa terrível mas é uma das coisas mais maravilhosas que já botei na boca, e depois subi de volta pra nova casa do Paulo, onde comemorei meu aniversário como se comemora aniversários: bebendo, rindo muito e comendo brigadeiro de colher. Combinamos que no dia seguinte eles me levariam ao poção do marimbondo, a cachu mais bonita da área. Que horas? Tinha que ser cedo, eles me disseram, umas 9h a gente passa lá. Combinou tá combinado, né, não dá pra desmarcar pelo zap meia horinha antes.
Vou confessar que dessa vez eu quebrei a minha própria regra e coloquei o despertador, mas claro que não precisava. Claro que acordei antes. Tomei mais um café maravilhoso enquanto Celeste me contava de sua família, e às 9:15 Paulo e Camila passaram na minha porta em sua caminhonete. Um cachorro local, Arauã, resolveu nos acompanhar na trilha. Essa foi mais pesada, mas a recompensa é bem difícil de descrever. A queda d'água perfeita, o poço verde esmeralda, aquela água fria que parece que vai te matar ou te curar, ou ambos, e um puta céu azul que perdurou o final de semana e que eu considerei meu presente. Tirei umas mil fotos mentais ao longo do final de semana. Mauá é infestado de borboletas azuis, sabiam? Aquele azul bem clarinho, tipo furta cor. A lua estava cheia também, né? Bem cheia. Assim que chegamos no marimbondo o Paulo olhou pra mim e disse que eu estava com sorte, que ele nunca tinha visto a cacheira com tanto volume, tão exuberante.
“Foi isso que me fez não conseguir mais ir embora daqui”, ele disse. Faz todo sentido. Parece quase piada saindo justo da minha boca cosmopolita, mas a cidade realmente não é páreo pra esse tipo de coisa. A escolha de viver aqui e não lá passa por outros lugares e subjetividades, mas acho que o acumular dos anos vai invariavelmente nos aproximando do mato e desse desejo de simplicidade. Pra quem curte ser surpreendido e viver sempre novas experiências, a cidade realmente vai se esgotando.
Ainda tive tempo de comer um pratão delicioso de massa no centrinho da cidade antes de voltar pra casa. Assim que devolvi o carro, entrei num táxi e finalmente comecei a ler os zilhões de recados no celular, meu coração disparou. Ansiedade, claro. Não é culpa da internet, mas é culpa dessa sensação de que a gente precisava estar em dia com absolutamente tudo e todos o tempo inteiro. E essa mania de querer tudo, saber tudo, falar com todos, assistir a tudo etc etc é uma mania que é filha da internet sim senhores. Ela que a tudo responde, mas que acaba não deixando muito espaço pro tipo de coincidência que aconteceu no meu mochilão em 2007 e nesse final de semana em Mauá.
“Acho brega dizer que trintei” foi o título elogiadíssimo que dei pro evento do meu pré aniversário de trinta na quinta-feira. A real é que é brega porque é clichezão, e aí a gente faz piada pra se distrair e distrair os outros do fato de que os nossos desejos vão mesmo encaretando com a idade, e isso não é necessariamente ruim se você pensar em encaretar como simplificar.
Pronto, podem dizer que hate to say I told you so. Vai importando cada vez menos mesmo essa coisa de estar certa e ser fiel ao personagem que você construiu.