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Tudo aquilo que eu queria te dizer sobre Girls


*texto publicado na versão impressa do Jornal A Gazeta no dia 22/04/2017

Eu acabei de fazer trinta anos. Cinco meses trás, quanto ainda dava pra dizer que eu estava na casa dos vinte, mas só por um triz, a Amy Sherman-Palladino finalmente encerrou Gilmore Girls com aquelas quatro palavras agora tão famosas. Eu estava assistindo com a minha mãe, que por sua vez tinha acabado de passar os últimos meses tardiamente maratonando a série original, ainda que eu tivesse implorado a adolescência inteira pra que ela assistisse comigo, sob o pretexto de que nós éramos a versão brasileira das garotas Gilmore.

Aquelas quatro palavrinhas cortaram a atmosfera entre nós e a TV como uma faca. Minha mãe quer muito um neto; eu não quero ser mãe. E não é como se ela tivesse outras alternativas – sou só eu: a filha única, mimada e ligeiramente culpada.

E agora mais essa: Hannah Horvath, meu segundo semi-alter-ego ficcional seguido tinha que virar mãe também. Eu sei que isso já estava rolando desde meados dessa última temporada, e então é óbvio que o finale não deveria ser uma surpresa. Aliás, surpresas em Girls nunca são bem surpresas, né? Elas só parecem surpresas porque a realidade realmente é mais estranha que a ficção. E Girls é muito true. Gente, Girls é o maior reality check que a TV fechada já produziu, razão pela qual a Lena Dunhan merece tanto os elogios que recebe. Quantas vezes eu já não me peguei franzindo a testa em sinal de repulsa e vergonha alheia diante de uma cena, apenas pra chegar à conclusão 10 segundos depois de que já tinha acontecido pior comigo?! Fora isso, santa metalinguagem, não é mesmo? A garota diz no piloto que acha que é a voz de uma geração, ou uma voz de uma geração, e aí passa os cinco anos subsequentes sendo exatamente isso – uma voz incontornável e extremamente prolífica de uma geração.

Mas bóra voltar pro finale. Quando eu finalmente me recuperei do choque causado pela aceleração da passagem de tempo nos primeiros cinco minutos, e então me dei conta de que se tratava de um finale em duas partes, ou seja, que o episódio 9 tinha sido algo como a primeira parte do fim (e por isso tanta gente achou que tivesse acabado ali), aí então eu consegui me conectar com a vibe de epílogo que esse episódio 10 teve. Girls começou e terminou com conversas familiares duríssimas. Duras, honestas, transformadoras – chamem como quiserem – mas as trocas entre Hannah e Loreen, entre Hannah e a adolescente sem calças e até entre Hannah e Grover, num certo sentido, dão a medida exata do quanto ela amadureceu e não amadureceu de 2012 pra cá. Aliás, uma coisa que passou sem parar na minha cabeça durante esse ep, até por conta das conversas da Marnie com a Loreen também, foi o quanto mudança de comportamento é algo que está ligado com aceitação.

É uma parada quase bíblica, tipo “senhor, dai-me força para aceitar o que eu não posso mudar, e coragem pra mudar o que eu posso.” Ou quase Délfico: “Conhece-te a ti mesmo.” De qualquer forma, são processos que só acontecem mais pro final dos vinte anos mesmo, e nesse sentido esse finale em dose dupla foi perfeito. É só lembrar da Shosh, que passou a série inteira inventando um personagem por temporada, tentando ser versões das três outras amigas, até perder a vergonha de querer todas as coisas bobas e fúteis que queria. E ainda deu uma lição em geral naquela cena do banheiro. Aliás, o arco da Shosh (que também é um pouco o arco do Ray) é tão incrível. A cena mais romântica dessa temporada inteira é a do beijo no carrosel, e significa tanto que o Ray tenha ficado justamente com a mulher que a Shosh achava "mais fake". Ser fake realmente é uma questão de perspectiva.

Enfim, o lance do bom entretenimento é que ele faz ser sobre você até quando não é. As minhas tretas e trutas familiares não são nem mais ou menos parecidas com as da Hannah e da Loreen, mas apenas assistir ao desespero das duas, essa coisa bem mãe e filha de não se reconhecer na outra e ao mesmo tempo ser a outra tão completamente, esse cansaço de quem já tentou explicar algo mil vezes e não consegue explicar de outro jeito, mas segue tentando – todas as cenas entre as duas bateram bem forte aqui. Mas o que me matou mesmo foi ver as duas com o bebê, as três gerações: avó, mãe e neta.

Esse finale me fez perceber que não dá pra fingir que o tal relógio biológico não existe, como eu vinha pregando a minha vida inteira. O meu corpo é um relógio, e relógios têm engrenagens perfeitas. Agora que não tomo mais pílula, sinto essa engrenagem funcionar de maneira muito clara, e ela é biológica sim. Mulheres engravidam, e todos os meses o meu corpo tenta fazer isso comigo – tenta me enganar, porque ele sabe que eu não quero. Nos dias em que estou mais fértil já reparei que sou capaz de olhar pra um completo estranho no meio da rua e pensar “humm, daria pra esse cara agora”, sem muito motivo aparente. Mas aí a cultura incide sobre esse instinto, eu volto pra casa, trepo com o meu namorado e a sensação é sempre muito melhor que em qualquer outro momento do ciclo – as contrações do orgasmo ajudam a carregar o esperma pro óvulo, cês sabem, né? Todo mês agora é isso – essa batalha consciente contra o meu próprio corpo.

Combater natureza com cultura é um lance extremamente complicado, dá um trabalhão, e no entanto estamos aqui tentando desde que o mundo é mundo. Eu pelo menos estou comprometida, porque sei que a maternidade não é pra mim. Tenho certeza, mas nunca tive coragem de tentar explicar pra minha mãe por que. Depois desse finale de Girls, e do belíssimo Mulheres do século XX (corram pro cinema), senti que eu devia pelo menos tentar. Então eis as razões que eu consegui elencar, em ordem absolutamente aleatória e totalmente desimportante:

Eu não quero ser mãe porque eu gosto de mudar de ideia tanto quanto eu gosto de fazer planos. Eu não quero ser mãe porque me parece muito definitivo, e todas as vezes que eu sonhei que estava grávida, a sensação era de desespero. Eu não quero ser mãe porque eu não sei nem se quero casar e/ou viver junto com alguém de novo. Não foi tão legal da primeira vez e eu acho que talvez eu seja mais feliz se cada um more em seu canto. Sei que dá pra criar filho assim também, mas o ponto não é esse. Eu quero envelhecer num modelo diferente de família, quero testar outros tipos de relacionamento. Sonho com uma comuna em Mauá e os amigos todos espalhados em seus chalés, cada qual com seus bichos e suas proles. Eu não quero ser mãe porque ano passado eu adotei um cachorro e só isso já me pareceu mais responsabilidade do que eu gostaria de ter. Eu não quero ser mãe porque cada segundinho que sobra do meu dia eu prefiro gastar ajudando alguém. Ajudar é o que me faz mais feliz nesta vida. Tem tanta criança, tanto adulto no mundo que já nasceu e que precisa de mim. Eu não quero ser mãe porque quero continuar cozinhando todas as segundas pra pessoas em situação de rua e porque eu quero poder traduzir o currículo da sobrinha da amiga da minha amiga, de graça, só porque saber que ela conseguiu o emprego dos sonhos com a minha ajuda já me garante uma semana de bom humor. Eu não quero ser mãe porque sou ao mesmo tempo a pessoa mais altruísta e mais egoísta que eu conheço – tipo a Hannah, se você parar pra pensar.

Acima de tudo, eu não quero ser mãe porque eu posso escolher, e poder escolher é algo que nós garotas levamos muito tempo pra conquistar. Porque o relógio biológico pode vir embutido, mas nós exercemos poder sobre as engrenagens. Aqui no Brasil sil sil inclusive ainda não totalmente, visto que não nos é dada a opção legal de abortar. Mas seguimos escolhendo, porque sabemos que a escolha é nossa.

No mais, a cena que curiosamente mais me fez chorar no finale todo foi a da Marnie cantando Tracy Champan no carro. Esse otimismo ingênuo e meio maluco dela é tão difícil de assistir, mas não deixa de funcionar como um epílogo bem bittersweet pros vinte e poucos, ainda mais em contraste com a situação das duas naquele carro lento, interiorano e maternal.

So remember when we were driving, driving in your car Speed so fast feel like I was drunk City lights lay out before us And your arm felt nice wrapped round my shoulder And I had the feeling that I belonged And I had a feeling I could be someone, be someone, be someone

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