Não estávamos nem na metade do desconcertante show das irmãs Lisa e Naomi quando, numa fuga para o banheiro, finalmente bateu: podemos adicionar “shows” à extensa lista de coisas que eu prefiro fazer sozinha. Ir ao cinema e viajar também constam. Culpemos minha mãe por só ter tido uma filha, culpemos os astros pela conjuntura sol em peixes, lua em leão, vênus em aquário, culpemos o patriarcado por me fazer sentir coisas conflitantes quando sou abraçada pelo meu parceiro em público.
Enquanto eu fazia a minha já tradicional migração da pista para a arquibancada do Circo (gosto de dividir o show nessas duas perspectivas) e me culpava por ter largado o namorado pelo caminho, lembrei que havíamos tido a nossa primeira briga algumas semanas antes, no show do Baianasystem, e que todas as minhas top brigas com namorados na vida foram em shows. Amigos, eu estraguei um show do XX por conta desse meu probleminha. Mas que probleminha, Luiza?
Bóra lá: eu prefiro ver show sozinha. Sozinha não, né, porque eu não sou louca, só #diferente. Eu gosto de dividir shows com anônimos. De me enfiar lá no gargarejo e ir fazendo amigos enquanto não começa. De dividir o beck com o colega do lado. De ficar na beirinha do mosh empurrando as pessoas de volta pra dentro. De fechar os olhos enquanto pulo e esbarro nos outros. Música ao vivo (e estou incluindo aí DJ sets “de verdade”) pra mim é um lance tão ritualístico. Dançar é tão ritualístico. Eu consigo dividir esse momento com a massa amorfa de corpos suados ao meu redor – contanto que ninguém me agarre ou tente bater papo no meio do fervo – mas não consigo dividir isso com o meu parceiro. Nem quando há muita sincronia de intenções, o que também não costuma ser o caso.
Um quer ficar mais pra direita – meus amigos estão lá. O outro quer ficar mais no meio – os meus estão aqui. Um quer mais cerveja, o outro mais água. Um quer ir ao banheiro, o outro não quer perder nem uma música. E, ok, dá pra fazer tudo separado. Mas e a culpa? E a sensação de ser um ET? Vejo um casal perdido num beijo que já durava uma música quase inteira e penso: queria achar isso gostoso. Não acho. Ahhh mas então você não está apaixonada. Menas, galera. Eu tenho 30 anos, eu já fui juntada. Eu sei.
Meus olhos estão sempre fixos no palco, ou fechados, olhando pra dentro, sentindo o grave – que no caso do Ibeyi torna tudo ainda mais intenso. Quando toca a minha música, eu não procuro os olhos de ninguém pra cruzar – eu acendo um cigarro. No man is big enough for my arms indeed. Pelo menos não na pista. Na pista, se estou com alguém, não me sinto tão eu. É como se, sendo um casal, eu não fosse capaz de ser totalmente livre.
Mas foco no show. Não sei se é a acústica perfeita do Circo, a conexão astral que acomete gêmeos ou uma combinação fortuita de muitos fatores, mas fato é que cada música no show do Ibeyi parece sincronizada e regida por alguma entidade maior que a gente, maior que tudo. Os timbres se complementam, os tambores ecoam, o ritmo é hipnotizante mesmo. E as letras, amigos, as letras. Let the river take them, river drown them / My ego and my blame.
A gravidade do meu probleminha é tanta que até quando o boy não se importa de fazer do meu jeito, não está reclamando, e está apenas me acompanhando, eu acho ruim. Porque na minha cabecinha todos deveriam querer o que eu quero – que é curtir o show sozinha. Alguém mais nesse clube ou eu preciso intensificar as sessões de análise?
Lá pelas tantas, quando já estávamos (achei o namorado no processo) sentadinhos lá em cimão na arquibancada, rolou um interlúdio (ou foi um trecho de uma música?) em que as irmãs cantavam “I’m no man”, e a gente repetia. Pensei imediatamente na Éowyn, heroína máxima de Senhor dos Anéis, num 2003 bem menos empoderado, encontrando o senhor dos Nazgul, que diz “No man can kill me”. Ao que ela responde: “I am no man”. E passa o facão na cabeça do sujeito.
Foi catártico pra mim esse momento – o alinhamento da música, com essa lembrança da Éowyn, com o momento pelo qual o mundo passa. Mas acho estranho botar isso pra fora estando acompanhada de um cara. Vocês não? Só que eu amo o cara, então vou fazer o quê? Rotação de show? Você fica do lado direito e eu do esquerdo? Estou arriscando a minha sorte, né – é isso que vocês estão pensando, eu sei.
Mas é que a gente se prende numas estruturas... numas ideias enlatadas do que é amor, do que é estar junto... sei lá, eu agora dei pra não fazer nada que nada que não me pareça natural. A coragem de bancar essa pequena subversão eu tiro de noites como a de ontem.