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Revisitando meu filme favorito por ocasião de um exercício de escrita





Outro dia postei um videopoema no insta e contei na legenda que ele era resultado de um exercício proposto num workshop que fiz com a Ana Estaregui. E que, antes de escrever o poema, precisei escrever uma dissertação (risos) sobre o tema. Na real, quando comecei a escrever o texto, nem sabia que sairia um poema no final. Estava apenas reagindo ao exercício. Aos curiosos e amantes de processos (e do filme em questão), aí vai.


1. Pense em algum poema, filme, fotografia, pintura que tenha

te marcado;


2. Tente reescrever esse poema, pintura, desenho etc pensando

no que se lembra dele: alguma imagem específica, um verso,

uma sensação, sua forma no espaço.


***


Em 2004, quando “Lost in Translation” estreou no Brasil, eu tinha 17 anos. Mesma idade da Scarlett Johansson quando rodou o filme. Mesma quantidade de anos que separam este texto da experiência de assistir ao filme. Estava cursando o terceiro ano do ensino médio em Vitória, estudando integral num colégio fortíssimo, mirando em passar pra direito na USP. A rotina era intensa, litros de café por dia, muita pressão, porque muitos planos, e o nosso relaxamento era ir ao cinema na sexta-feira, único dia em que não voltávamos pro turno da tarde.


Eu estava aguardando ansiosa a chegada do filme em Vitória, o que acontecia sempre com algum delay em relação a Rio e São Paulo. Vitória tinha dois cinemas e meio nessa época, a gente brincava. Dois melhorzinhos em shoppings e uma salinha mequetrefe na universidade federal, sempre infestada de baratas e mosquitos. Que esse filme fosse estrear em um dos shoppings já era um grande acontecimento, porque geralmente o circuito alternativo tinha se espremer nessa única salinha fedida da UFES. Mas Sofia já tinha feito “As Virgens Suicidas”, o Bill Murray era o Bill Murray e o hype em torno desse novo filme era grande. A minha ansiedade era tanta que consegui convencer minha mãe e minha melhor amiga de irmos na quinta de noite, que era o dia em que os filmes entravam em cartaz. Chegamos lá e o rolo não tinha chegado. Sem rolo, sem filme. Isso nunca tinha me acontecido antes e nunca me aconteceu de novo. Voltamos então no dia seguinte, depois da aula, como de hábito.


Não dá pra afirmar que foi o filme, acho que foi um conjunto de coisas que aconteceram ou já estavam acontecendo dentro de mim nessa época, e que entraram em ebulição depois do filme, mas fato é que semanas mais tarde eu estava sentada na frente do computador, fazendo inscrição pro vestibular, e minha mãe perguntou se eu ia tentar só direito na USP mesmo. Respondi que na USP e na UFES. Ela refez a pergunta. É só isso mesmo? Esse curso, nesses lugares? Resolvi entrar no site da PUC-Rio. O Rio não estava nos meus planos, mas havia família, era mais perto de Vitória. No site, vendo as opções, meu coração quis clicar em letras e não em direito. Fiz a inscrição, passei com a nota do ENEM no primeiro ano em que o ENEM funcionou pra isso, e o resto é história.


Menos de um ano depois, no primeiro semestre da faculdade de letras, ainda cheia de uma coragem quase infantil, antes do curso me causar uma síndrome de impostora aguda e duradoura, escrevi um texto baseado no filme pra oficina de produção de texto narrativo, com a Pina Coco. O exercício proposto por ela consistia em escrever um diário para um personagem fictício - poderíamos inventar ou pegar emprestado da ficção. Pensei instantaneamente na Charlotte de “Lost in Translation”. Aluguei o DVD e passei um final de semana meio bêbada de whisky, vendo, revendo e escrevendo à mão seu diário imaginado, que depois xeroquei e compartilhei orgulhosa com a Pina e alguns amigos.


A experiência toda foi tão prazerosa que a sensação durou semanas. Foi a confirmação de uma escolha bem feita. Se fazer faculdade era isso, que não me acordassem desse sonho nunca mais. Óbvio que a vida real atropelou, que eu perdi essa autoconfiança e essa verve, e que Estruturas Lexicais não era exatamente uma matéria prazerosa, mas essa experiência foi um marco e me deixou uma relação muito íntima com esse filme, que cultivo desde então. Assisto uma vez por ano, give or take.


De modo que não havia pra mim outra alternativa que não fosse essa para a proposta mais recente do grupo de escrita que estou frequentando. A saber: “Pense em algum poema, filme, fotografia, pintura que tenha te marcado; Tente reescrever esse poema, pintura, desenho etc pensando no que se lembra dele: alguma imagem específica, um verso, uma sensação, sua forma no espaço.


Foi justamente o que eu fiz aos 18 anos com o diário da Charlotte. Reescrevi o filme em formato de diário, no calor do momento e das doses de whisky.


***

Agora tento de novo, já suspeitando que vai ser difícil condensar as ideias num poema, ainda que essa seja a minha mídia atual. Por causa da idade, escolhi um baseado e uma taça de vinho pra acompanhar desta vez, em vez do whisky. O bloco de notas do celular em vez das folhas de papel almaço da faculdade. Dezessete anos separam as experiências. A ideia é ir escrevendo tudo que der vontade e depois ver o que sai, mais ou menos como um “reaction video”, só que por escrito. Nessa primeira etapa, corrigi apenas erros ortográficos.


Lá vai:


Será que a minha vez de ir pro Japão só vai chegar na meia idade? Já era pra ter ido. Estou deixando de ser a Charlotte pra ser o Bob, risos.


Engraçado que recentemente eu finalmente provei o whisky Suntory. Achava que era uma marca inventada, mas não é não. Custa 900 reais a garrafa mais barata. Fui pega de surpresa num casamento de pessoas muito ricas. Fiquei eufórica no dia.


Devo ou não encontrar o texto escrito aos 18 anos? Lembro de ter me dado prazer como nada antes havia dado, mas já reli alguns anos depois e achei pretensioso, inocente e pueril. Medo de reler e ter piorado.


Escrevi esse texto ainda no primeiro fôlego da faculdade de letras, antes dela me estragar.


O marido da Charlotte ronca. O primeiro cara com quem morei junto e pensei em casar não roncava. Isso era um problema no meu objetivo de ser a Charlotte. Agora que não tenho mais idade, o meu atual ronca.


Não dialogo com quem acha que esse filme envelheceu mal por estereotipar e/ou fazer graça com a cultura japonesa.


Esta não é a primeira vez que assisto a esse filme ritualisticamente. Aliás deve ser a décima. Alguns anos atrás, assisti com uma amiga tão obcecada quanto eu e a gente se divertiu muito. Lembro de ter brincado que estávamos ficando velhas pra empatizar com a Charlotte. Agora então…não demora e somos realmente o Bob. Desacelera aí, deus.


A Charlotte tem 24, 25 no filme. Está naquele limbo que a gente entra quando acaba os estudos e aí o trabalho não é exatamente o que imaginávamos, e então ficamos completamente à deriva. Acho que escrevi um texto sobre isso aos 25.


Eu descobri o Murakami por causa desse filme, porque li em algum lugar que a ideia de Japão da Sofia vinha dos livros dele. E tem tudo a ver mesmo.


Primeira vez que assisto esse filme depois de ter tentado tricotar. Não curti não, sorry Char.


Olha só, primeira vez depois de ter parado de fumar também. Amo como ela trata o cigarro displicentemente, como se não fosse um vício, mas um hábito adotado por tédio, porque esse foi exatamente esse o meu caso. “I’ll quit later”. Pois é, gata. Parei.


Se eu não puder rir de LIP MY STOCKINGS podem vir buscar minha carteirinha de feminista-progressista-antirracista. Eu entrego.


Curioso que às vezes a mesma feminista que te enche o saco pra abraçar as suas imperfeições é a mesma que te proíbe de curtir um produto cultural ideologicamente imperfeito.


Não fiz Yale mas fiz Brown, heim Char. E pelo menos nunca ouvi fitas de auto ajuda.


Depois de tantos anos, me pergunto o que essas pessoas lembram da experiência da filmagem. Tem um doc, se não me engano, mas mesmo assim. Eu já esqueci tantos detalhes preciosos de eventos importantíssimos dessa época.


O resultado final do filme é eterno, mas o processo é fogo puro. Se eu tivesse que categorizar, diria que a arte é fria em essência. Justamente porque é eterna. O processo (de fazer e de consumir) é que é chama mesmo, e eu não acho que dê pra eternizar nada disso.


Detesto que esse filme não seja uma obsessão exclusiva. Não sinto ciúmes de gente, mas sinto ciúmes de certos livros e filmes. “Você não pode gostar mais que eu”. A Lena Dunham escreveu um texto inteiro, hilário por sinal, sobre como foi visitar o Japão esperando ter uma experiência similar à do filme, apenas para quebrar a cara, claro. Eu ainda tenho esse sonho. Ir, ficar no mesmo hotel. Jamais iria ao Japão acompanhada. Vou sozinha, pra ficar 1 mês, esse sempre foi o plano.


O guarda roupa da Charlotte é talvez minha única crítica ao filme. Ela tem muita personalidade pras roupas que usa.


Recentemente, com a idade e a pandemia, as festinhas têm parecido cada vez mais com essa do dia que eles saem com o Charlie Brown e acabam no Karaokê. Eu amo a vibe dessa festa. Vou fumar mais um pouquinho.


Rapaiz, eu nunca tinha visto malícia na cena em que ele põe ela na cama depois dessa primeira night out. Que louco isso, gente. Assim, sempre achei sensual numa vibe meio platônica, mas dessa vez me deu até calor.


Nossa, mas eu tô muito mais interessada em escrever um diário dele do que dela, agora. Realmente troquei os papéis. Estou too old pra Charlotte, quem diria.


Eu acho que o que invejamos (o que eu invejo, pelo menos) nesses personagens é justamente o fato de eles estarem vivendo momentos de transição imensos. Não só pelo apaixonamento, acho que por isso também. São momentos da vida diferentes, em termos de idade, mas parecidos demais se você for analisar de perto. São cortes secos pra outra vida. Da vida acadêmica pra vida real, e da vida real pra uma possível aposentadoria, ou pelo menos pra uma diminuição de ritmo. São duas fases em que você fica numa vibe meio “berenice segura nós vamos bater”. E fases em que as pessoas tendem ao escapismo. Nunca tinha pensado nisso.


Tipo, os dois estão perdidos e se encontram, isso ficou óbvio desde a primeira vez, mas nunca tinha parado pra pensar que pelas idades essas são fases meio análogas.


Também nunca tinha reparado no quanto o Bob é educado ao extremo. Uma “politeness” muito americana mesmo. Amo a cena em que ele faz menção de segurar a stripper quando acha que ela vai cair do pole.


Eu desejo tanto ainda viver essa experiência que me sinto meio culpada.


Será que o Bill Murray sabe que esse foi o último filme em que sentimos tesão nele?


Você acha que entende esse diálogo famoso deles deitados na cama por motivos diferentes em fases diferentes da vida. Ele fez sentido pra mim aos 16, aos 25 e ainda faz agora, aos 35.


Esse templo do final está aí porque Murakami, certamente.


E se a mídia deste texto que to escrevendo fosse o Instagram stories? Estou meio que fazendo stories, acho. Meu cérebro já se condicionou a escrever assim. Essa coisa de ficar intercalando texto e foto…


O Bill Murray talvez seja o homem cis hétero branco velho por quem eu sinto mais compaixão. Tipo ele e o Lula, pau a pau.


Eu amo a cara da Charlotte quando entende que ele tá com a mulher da Sausalito dentro do quarto, sério. Esse roteiro não tem um defeito. Ganhou o Oscar, né.


It suddenly starts ending way too fast for me.


Olha como ele é educado com ela também, quando se encontram por causa do alarme de incêndio


A cena em que eles ficam se olhando apaixonados no bar é a cena que ela tá mais gata.


Esse papo de formar uma Jazz Band é bem Murakami também.


“Have a good fright or something”. Sério, eu passo mal.


Amo que o final é uma cena mega clássica de perseguição à pessoa amada antes que seja tarde demais, tão comum em filmes da época, mas feita de um jeito único, porque nunca ficamos sabendo o desfecho realmente.


Acabou. Não sei exatamente o que eu senti da primeira vez. Não dá pra saber. Mas sempre choro e fico com as bochechas em chamas. Vou ter que achar a porra do diário porque eu eu inventei uma frase pro trecho inaudível que ele fala no ouvido dela. No roteiro original existe uma marcação também, mas a Sofia sempre conta que ninguém sabe o que ele disse realmente.


Se alguém não entende a baita homenagem que esse filme é pra Tokyo, sei lá. Eu tô muito errada mesmo.


Queria muito escrever o texto quente ainda. Mas tenho que fazer jantar. O boy vai chegar faminto.


Se eu não fizer os stories imediatamente, no calor do momento, eles vão valer?


Vão ter que.


***


Reli o diário e não doeu tanto quanto eu esperava. Tem uns bons momentos. Mas dá pra perceber que eu escrevia como achava que tinha que escrever, e não como eu queria escrever. Foram só uns 15 anos pra quebrar essas correntes, risos nervosos. No fim das contas, o poema estava mais lá do que aqui.


Charlotte em 2022


Aos 35, nunca fui a Tóquio

nunca sentei de pernas encolhidas

diante de uma janela imensa

no alto do Park Hyatt

de calcinha rosa

e olhar perdido

pensando que a sensação

é a de estar num elevador

panorâmico enguiçado

desejando que fosse possível

explorar a minha vida

como exploro uma cidade nova.


Mas já sentei em alguns piano bars

ainda que nunca nesse

e já flertei com alguns homens mais velhos

mas nunca com sucesso.

Curiosamente já fui casada

com um fotógrafo

chegamos a planejar uma viagem ao Japão

mas terminamos antes.


Já entrei em templos budistas

e não senti nada

e já saí com amigos descoladíssimos

em grandes metrópoles desconhecidas

e fui parar em festas deliciosamente estranhas.

Também já saí correndo de bares

onde meus amigos arrumaram confusão

e já adormeci no táxi

vendo as luzes da cidade pela janela,

embriaga e satisfeita.


Já fui carregada no colo pro quarto

mas nunca num hotel

e especialmente não pelo Bill Murray

e já bati meu dedo umas trezentas vezes

em mesinhas, cadeiras e quinas,

mas nunca fui levada ao hospital por um crush

para tirar radiografia.


Já passei uma noite olhando nos olhos de uma

pessoa que queria muito beijar e não beijei

mas nunca correram atrás de mim

no meio da rua pra me dizer uma

última coisa importantíssima.


Já tive que descer correndo de pijamas

pra esquina de um hotel

por causa do alarme de incêndio

e olhei em todos os olhos

procurando alguém

que lembrasse dessa cena

que topasse reviver essa cena

mas no fundo sei que essas coisas

nunca acontecem quando a gente quer

que filmes são filmes

livros são livros

e a vida que de fato vivemos

é sempre mais estranha

e mais deliciosa, eu acho

que a ficção -

embora muitas vezes não pareça.

Por isso a importância do que não foi.

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