Em 2005, quando cheguei no Rio de Janeiro, aos 18 anos, o Carnaval de rua estava passando por sua primavera. Renascendo. Eu não fazia a menor ideia, porque se me perguntassem eu diria que não gostava de carnaval. Nessa época eu era “da rave”.
Me envergonho um total de zero nadas em dizer que simplesmente não venho de uma cultura do samba. Não tenho tradição alguma. Pra não dizer que eu era 100% alheia ao carnaval e ao samba, tinha sim uma coisa que eu curtia: ver os desfiles na TV e a apuração com a minha avó na quarta de cinzas. Sou Salgueirense porque as minhas primeiras memórias de carnaval são do ano do “Peguei um Ita no norte”. As primeiras noites que virei na vida foram noites de desfile, em que eu e meus primos assistimos, à média distância, à TV e aos adultos ficando progressivamente mais bêbados a cada escola que entrava. Arrisco dizer que era mais o prazer do fervo que levava meus parentes àquele ritual, não um apreço pela cultura do carnaval em si. O que também não está errado.
Enfim. De 2005 a 2007 eu simplesmente voltava pra Guarapari e me escondia da rua durante o carnaval. Via os desfiles e ia pra boate se tivesse boate. Em 2008 eu estava fora do país e meus familiares ficaram bêbados numa tarde de carnaval e saíram pelas ruas do condomínio onde temos casa, batendo uns poucos instrumentos disponíveis, fantasiados com o que tinha. Minha mãe saiu de noiva com seu namorado e esse foi de fato o único casamento que tiveram. O “Bloco da Aldeia” deu tão certo que foi oficializado e institucionalizado. Virou tradição no condomínio. Coincidência ou não, em 2023 minha mãe está recém separada e o bloco não saiu - pela primeira vez desde 2008. A vida e seus ciclos.
Este parece ter sido mesmo o carnaval em que alguma coisa muito importante finalmente entornou. Teria sido em 21, não fosse a pandemia. Em bom capixabês: o caldo estava esburrando há alguns anos já.
Mas voltemos. Em fevereiro de 2009 eu estava voltando ao Rio depois de um ano morando na Inglaterra. Escolhi, à revelia de minha mãe, que moraria em Botafogo, o bairro cool do momento, o bairro para onde os jovens estavam indo. Ninguém naquela época fazia a mais vaga ideia do que significava o verbo “gentrificar”, mas guardem essa informação porque ela é central.
Essa era a época de ouro do RMC, Rio Music Conference, festival de música eletrônica mainstream que divertia os cariocas que “não gostavam de carnaval” como eu. Me mudei literalmente na semana do carnaval e, claro, no apê ao lado moravam 5 rapazes também estudantes da PUC. Nos vimos pelos corredores e os porteiros fizeram a fofoca. Estávamos sempre nos desencontrando: nós saindo e eles chegando. Eles curtindo os blocos de dia, eu curtindo as raves de noite. Nos conhecemos oficial e literalmente assim: eles saindo de um táxi vestidos de mulher e eu entrando toda patricinha arrumadinha com minha prima nesse mesmo táxi.
Acabamos ficando muito amigos, claro. E, ao longo do ano seguinte, no reajustar das amizades depois de um ano fora do país, já cheguei ao carnaval de 2010 com uma promessa feita: eu iria ser levada para pelo menos um bloco. Acabei indo a dois - o Boitatá na praça XV com os vizinhos e o saudoso Sassaricando, na Glória, com uma nova amiga cujo nome eu vou poupar e os “amigos da fulana”, que era como eu chamava um certo grupo de pessoas descoladas do Rio de quem eu sempre fui amiga por tabela, mas nunca de facto, porque me falta pedigree e/ou cara de pau.
É absolutamente óbvio que eu gostei do carnaval de rua, porque é difícil não gostar. É preciso ser louco, ou um pouco fóbico, inclusive tenho amigos que são e respeito. Mas era óbvio que eu ia gostar. Eu gosto de música, eu gosto de fervo, eu gosto de me fantasiar, eu uso psicodélicos desde os 15 anos. Eu sou o público alvo do carnaval. De 2010 em diante, então há 13 anos, eu fui construindo a minha história com o carnaval de rua do Rio. Todo esse prelúdio pra dizer que se existe alguém com lugar de fala pra falar do “exclusivismo” do carnaval carioca nos anos 10/20, esse alguém sou eu. Uma zé ninguém vinda de outro estado que desbravou essa desgraça na unha, com as armas que tinha.
De 2011 a 2013, namorei um rapaz que tinha lá seus contatos com a tal galerinha cool do Rio, e assim fui descobrindo o carnaval não oficial, o carnaval do centro, o carnaval dos secretinhos. Ainda sem noção alguma do que isso significava, beleza? Quarta onda do feminismo chegando devagar e em paralelo pra me fazer entender as coisas e meu lugar no mundo.
Em 2016, já com alguns km de folia debaixo do meu All Star, e em algum processo de desconstrução, fui convidada por uma revista online famosinha da época para dar dicas sobre o carnaval do Rio. Lembro bem que defendi os blocos secretos, mediante aquele clássico argumento de que sem autorização da prefeitura não tem como avisar com antecedência, não tem como ter estrutura, não tem como um monte de coisa. E acho que esse argumento é até certo ponto válido - o que não é oficial não precisa ser tratado como oficial. Não existe SAC do carnaval de rua do Rio. Existe caos, e que delícia. Mas é preciso ética até no caos. E é aí que a coisa desanda.
Nessa matéria de 2016 também dei conselhos. Disse que se você queria ir aos blocos pequenos e secretos, você tinha que comunicar esse desejo. Você tinha que fazer por onde, risos. Meu texto poderia ter se chamado: MERITOCRACIA DO CARNAVAL DE RUA - SE EU CONSEGUI FOI PORQUE EU CORRI ATRÁS SIM. E corri mesmo. Eu mendigava informação de quem eu sabia que tinha. Da tal galerinha cool de quem sempre fui amiga com dois graus de separação, porque as pessoas me acham estranha. Porque eu ando com gente estranha. Diferente. Eu coleciono essas palavras desde a infância, e eu sou branca e magra. Pensa.
Anos depois, na terapia, fui entender que não era que essas pessoas não me aceitassem completamente no clubinho. Era eu quem não conseguia botar os dois pés lá dentro, porque em algum lugar aquilo me incomodava também. E é bem possível que seja um pouco de ambas as coisas.
Esse texto de 2016 viralizou, muito também porque eu dei algumas dicas mais palpáveis sobre blocos desejados. Coisas meio óbvias, tipo “o Boi tolo sai sempre aos domingos às 7h, geralmente da Candelária ou arredores”. “O Minha Luz é de LED sai na quinta do Centro”, etc. Rapaiz, foi um shitstorm. Fui acusada por um dos organizadores do LED de estar DESTRUINDO O CARNAVAL DE RUA. Entregando de bandeja pros playboys. Que o carnaval do centro era para “poucos e bons”. É tragicômico, porque na época a discussão não tinha nem tocado grupos periféricos. Era uma rinha de zona sul esquerda caviar X zona sul playba. Só rindo da nossa própria desgraça mesmo.
Nessa época já tinham me explicado o que era privilégio branco e eu já estava ligada que tínhamos gentrificado o centro da cidade no carnaval. E é o pior tipo possível de gentrificação, porque ela é temporária e não traz melhoria alguma pra região. Só hype. E, como sabemos BEM, hype não enche barriga.
Não enche barriga, mas é o combustível que move o Rio de Janeiro. O Rio é movido a hype e mate com limão, meus amigos. Acho graça que foram os gringos no tik tok que cunharam o termo “nepobaby”, para designar principalmente modelos que não ganharam fama e espaço pela via do merecimento, mas sim por serem filhas de famosos, mas o rolê da cena “cultural zona sul” carioca não é muito diferente não. Quem não é nepobaby precisa se filiar a um para entrar pro clube e acessar as benesses, que vão de convites pra Sapucaí e Baile da Vogue a rodinhas de violão na casa de Caê no 2 de fevereiro em Salvador. Nada de novo sob o sol também, isso sempre existiu, só vai mudando a carinha de leve. Hoje em dia, por exemplo, esse grupo está preocupadíssimo com representatividade, então escolhe a dedo uma meia dúzia de pessoas periféricas e/ou fora do padrão pra tokenizar. Assim, quando chega a reclamação de que “Só tinha branco na foto”, eles têm lá a meia dúzia de fotos com pessoas negras pra mostrar. Ou respondem sem o menor pudor num grupo com 300 pessoas no whatsapp “tinham vários pretos inclusive tocando, puxando”. Com aspas porque é verdade esse bilete, e eu tenho os recibos.
Que horror, né? Pois é, que horror. Tudo isso pra dizer que o Loló de Ouro não é responsável sozinho pela gentrificação do carnaval de rua não oficial do Rio de Janeiro. Ele é apenas a tempestade perfeita. O grande catalisador do problema. O ventilador no caminho da bosta.
Novamente: eu tenho muito lugar de fala nessa treta. Eu estava lá no ano em que o Loló nasceu, espontaneamente, no Bar Dellas, logo depois do primeiro desfile do Panamérica Transatlântica, um bloco totalmente desconhecido e novo ao qual eu queria ir porque sabia que eram músicos bons envolvidos, e tinha sido alertada por um amigo, também músico. A galerinha do hype estava cagando. Mas era um horário meio vazio de tudo na segunda, e aí, quando ficaram sabendo que tava bom, foram chegando, já no final do desfile, e depois se enfiaram no Bar Dellas pra gastar a onda. São lindas essas espontaneidades do carnaval, achei legal que aconteceu, que batizaram o bloco, fizeram insta, etc. No início parecia inofensivo. Mas é aquela coisa: se você cria o hype, ele cresce. É natural e é assim que funciona o carnaval do Rio desde sempre. Simplesmente não tem como alegar que não sabiam que ia acontecer.
Não me lembro muito bem como foi em 2020, até porque não fui convidada, apesar de ter “amigos” na “organização”, mas lembro bem que ao longo da pandemia esse auto intitulado “grupo de amigos” seguiu alimentando o instagram. Fez passeio de barco e postou horrores. Várias pessoas nesse grupo são pessoas públicas, então é natural o interesse de todos. Aí, em 2022, rolou aquele já antológico e tragicômico episódio da planilha, em que alguém da organização do Loló pediu pra que retirassem as infos sobre o bloco de uma planilha que circulava nos grupos de aficionados do carnaval. Pra quem não sabe, já tem alguns anos anos que os amantes mais dedicados do carnaval, inclusos aí os músicos e coletivos que de fato fazem o carnaval não oficial acontecer, se organizam em grupos para facilitar a folia. Pra “mandar loc”, especular, criar listas, flertar, etc. Isso é coisa de gente dedicada, gente que leva o carnaval a sério. Cada grupo tem entre 200 e 700 pessoas, e não devem existir mais que uns 10, se muito.
Pois que no carnabril de 22 uma pessoa da organização do Loló pediu pra que retirassem o bloco de uma planilha que estava circulando nesses grupos. Retiraram, mas não sem antes dar uma bela zoada, porque o carioca não perdoa. No lugar onde deveriam estar as infos sobre local e horário de saída do Loló, lia-se “A pedido do bloco, favor não comparecer”. Eu ri demais. A sagacidade de quem escreveu é tamanha que capturou a essência do bloco. É um bloco que quer que você o queira, mas não te quer de volta. É a essência do conceito de hype também. Desejo ser desejado, mas não desejo ser tocado. Percebam que é a antítese completa do carnaval de rua. Se o carnaval é caos, é suor, é anarquia - um bloco que só quer por perto seus melhores amigos não pode nem querer ser um bloco, mas enfim.
Os organizadores revidaram com outra piada, criaram o “Não tem loló” e foram pra rua arrastando sua pequena multidão de seguidores do hype. A partir daí, pelo menos pra mim, já estava tudo errado, tanto que não compareci. Se até o Boi Tolo avisa onde e quando vai sair, por que o Loló não pode? O Boi Tolo também não tem estrutura, também não tem corda física. Tem muita organização descentralizada e horizontal, que é como funciona esse “nosso” carnaval. Se existe o medo de encher demais, então que se organize mais. Ou não saia. Ou faça uma festinha entre amigos. O que eu acho muito complicado é criar um insta, criar um hype, alimentar esse hype para um cacete e depois se fechar completamente por “medo de encher demais e isso ser uma questão de segurança”. Essa conta não fecha.
Tu te tornas eternamente responsável pelo hype que crias, risos choros parceiro. O carnaval é isso. O Bloconcé não conseguiu fazer nem duas saídas “normais” de cortejo. Rapidamente se criou um hype imenso, o segundo cortejo lotou demais, não conseguiu nem andar e depois disso o bloco virou outra coisa, virou apresentação, faz um cortejo-show no pós carnaval. Acontece. O Canários do Reino meteu um cortejo no Maracanã no horário do Boi Tolo e foi LINDO. E sabe o que não tinha por lá? Blogueiras. Depois do incidente da planilha em 2022, o Loló tinha duas opções: voltar a ser só uma festa entre amigos ou crescer organizadamente.
Escolheram sair do alto de um morro, com uma faixa onde se lia “Viva a Democracia”, sem divulgar em lugar nenhum sua saída. E sem desmentir os boatos que foram surgindo também. E dando risada. Uma influencer humorista famosa e muito querida que toca no bloco deu pistas erradas na base do kkkkk em seu instagram. Milhares de pessoas foram pra Praça da Harmonia e depois pro Mirante do Pasmado atrás dessas pistas falsas. E aí, quando reclamaram, foram tratados com deboche. “Ano que vem a gente faz um comunicado via assessoria de imprensa”, um integrante disse. Puxado, né.
Num bate boca generalizado que se iniciou num desses grupos de carnaval que descrevi acima, uma instrumentista que toca com o Loló me disse que não divulgaram porque não quiseram mesmo. “Porque não somos obrigados”. “Porque não temos estrutura”. Viva a democracia real ficial. De tudo, o que mais me impressionou, além do racismo escancarado da resposta da garota sobre os negros presentes e do silêncio ensurdecedor de uma amiga, que primeiro disse que estava pronta pra trocar comigo, e depois nunca mais me respondeu, foi a falta de noção mesmo para lidar com as críticas. Como se ser de esquerda te eximisse de fazer merda. A esquerda branca carioca só explodindo e começando de novo mesmo. Mea culpa inclusive.
Depois do bate boca generalizado que rolou na sexta de cinzas, jurei pra mim mesma que só iria lidar com esse assunto internamente, porque já tinha perdido um dia inteiro remoendo isso. Mas acho que existe um motivo maior que não está nos deixando largar esse osso. O carnaval esse ano teve seus momentos gostosos, mas foi muito marcado por todos esses transbordamentos. Duas grandes festas de música eletrônica floparam quase que completamente porque não conseguiram conciliar uma demanda imensa de público com o desejo de permanecerem gratuitas e “democráticas”. Me dá uma aflição, porque o ingresso gratuito retirado na ingresse não garante democracia. É, aliás, uma barreira anti “povão”. Anti furto, os organizadores diriam. Também. É espinhento esse assunto, né? Pois é. Tu quer ocupar o centro mas não quer lidar com os problemas do centro? Voltamos sempre para aquele texto mágico que não me lembro de quem é, mas cujo título resume muita coisa: “O fato de você poder usar o seu macbook no metrô está diretamente ligado à sua disposição para limpar a sua própria privada”. Algo assim.
Defendemos a democracia com tudo que tínhamos nos últimos quatro anos. Mas que democracia é essa que o Loló de Ouro celebra no alto do morro da Providência com sua faixinha? A que segue nos permitindo a diarista para limpar o glitter do chão no fim do carnaval? Mea culpa.
A democracia que celebramos nas ruas do centro durante o carnaval não oficial do Rio é uma piada. É uma democraciaZINHA, excludente pra cacete e construída por um monte de nepobaby da zona sul.
Urge devolvermos o carnaval e o Brasil pra quem construiu essas duas coisas de fato. Aí estaremos realmente em desconstrução.
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